——————————
PREGAÇÃO APOSTÓLICA
“SOMOS TODOS UM EM CRISTO”
——————————
DOM PIETRO ALBUQUERQUE CARDEAL FERRAZ
POR MERCÊ DE DEUS E DA SANTA SÉ APOSTÓLICA
PREGADOR APOSTÓLICO DA CASA PONTIFÍCIA
aos veneráveis irmãos e a todos que a esta lerem,
graça e paz da parte de Deus, o Pai.
A unidade em Cristo é uma das mensagens mais sublimes do Evangelho, que nos convida a superar divisões humanas, culturais e religiosas para formar uma só família em Deus. Em sua carta aos Gálatas, São Paulo declara: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Esta afirmação é uma síntese da boa nova de que a redenção em Cristo transcende barreiras sociais, étnicas e religiosas, propondo uma unidade que não anula a diversidade, mas a harmoniza em um único corpo, o Corpo de Cristo.
O Concílio Vaticano II reforçou essa visão universalista da Igreja em sua constituição dogmática Lumen Gentium, ao afirmar que “todos os homens são chamados à união com Cristo, que é a luz do mundo, do qual todos dependemos, e para o qual nos dirigimos” (LG, n. 3). A Igreja, portanto, não é apenas uma comunidade de crentes, mas um sacramento de unidade para toda a humanidade, refletindo o desejo divino de que todos sejam um, conforme a oração de Jesus: “Que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti” (Jo 17,21).
No entanto, a unidade em Cristo não é sinônimo de uniformidade. A diversidade cultural, social e religiosa é uma riqueza que reflete a multiforme sabedoria de Deus (cf. Ef 3,10). Em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco afirma que “a Igreja que evangeliza se enriquece com a diversidade, vive uma sinfonia de diferenças que, longe de fragmentar, completam-se mutuamente” (EG, n. 236). Dessa forma, a unidade cristã é como um mosaico, onde cada peça, com sua singularidade, contribui para a beleza do todo.
No entanto, viver essa unidade é um desafio em um mundo marcado por divisões. O preconceito racial, as discriminações sociais e as tensões religiosas são realidades que ainda fragmentam a humanidade. A doutrina social da Igreja ensina que “o princípio fundamental do cristianismo é a dignidade de toda pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus” (cf. Gn 1,26-27). Essa dignidade inalienável é a base para a superação de todas as formas de exclusão e discriminação.
A história bíblica fornece numerosos exemplos de como Deus chama os seres humanos à unidade. O episódio de Babel (Gn 11,1-9) narra como a humanidade, ao buscar a própria glória, se dispersa e se confunde. Em contrapartida, o Pentecostes (At 2,1-13) revela como o Espírito Santo reúne povos de todas as nações, superando a barreira das línguas e promovendo uma nova unidade em Cristo. Esse contraste ilustra que a verdadeira comunhão não nasce dos esforços humanos, mas é fruto da graça divina.
Ainda hoje, a missão da Igreja é testemunhar essa unidade em um mundo dividido. O Papa João Paulo II, em sua encíclica Ut Unum Sint, destacou que “a unidade pela qual Cristo rezou não é uma simples questão de eficácia pastoral, mas uma exigência intrínseca da própria natureza do Evangelho” (UUS, n. 5). A evangelização, portanto, não se limita à proclamação da mensagem cristã, mas inclui o compromisso com a reconciliação, a justiça social e o diálogo inter-religioso.
O diálogo inter-religioso é particularmente relevante para a vivência da unidade em Cristo. Em Nostra Aetate, o Concílio Vaticano II afirma que “a Igreja rejeita, como contrário à vontade de Cristo, qualquer discriminação ou perseguição por motivos de raça ou religião” (NA, n. 5). Essa abertura ao diálogo não implica relativismo, mas o reconhecimento de que a busca pela verdade é uma experiência comum a todos os povos. Cristo, que é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6), está presente de maneiras misteriosas nas diversas tradições religiosas, conforme ensina o documento Ad Gentes: “A Igreja considera tudo o que de bom se encontra semeado nos corações e nas culturas como um reflexo do Verbo” (AG, n. 11).
Essa visão é complementada pelo compromisso com os pobres e marginalizados, pois a unidade cristã é inseparável da solidariedade. O Evangelho de Mateus nos recorda que Cristo se identifica com os pequenos e necessitados: “Tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). A promoção da justiça social não é apenas uma tarefa ética, mas uma expressão concreta da unidade em Cristo. A encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, sublinha que “somos chamados a ser um povo, uma única comunidade, que acolhe a todos, sem excluir ninguém” (FT, n. 147).
Essa unidade, entretanto, exige conversão pessoal e comunitária. O pecado, que é a raiz de todas as divisões, deve ser superado pela graça de Deus e pela vivência do amor. São João nos lembra que “aquele que diz estar na luz, mas odeia seu irmão, está ainda nas trevas” (1Jo 2,9). O amor cristão, que se expressa no perdão, na paciência e no serviço, é o caminho para construir pontes onde há muros.
Finalmente, a Eucaristia é o ápice da unidade em Cristo. São Paulo, ao ensinar sobre o corpo e o sangue do Senhor, afirma: “Porque há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois todos participamos do mesmo pão” (1Cor 10,17). Na celebração eucarística, a diversidade de povos, culturas e histórias se funde em um único ato de louvor e ação de graças.
Em suma, ser um em Cristo é um chamado e uma missão. É um chamado a reconhecer a dignidade de cada pessoa e a abraçar a diversidade como um dom. É uma missão de construir a unidade em um mundo dividido, testemunhando o amor de Deus que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo (cf. 2Cor 5,18). Essa unidade não é uma utopia, mas uma realidade que já começamos a viver pela fé e que se consumará na plenitude do Reino de Deus, onde “não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor, porque as coisas antigas passaram” (Ap 21,4).
Assim, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo, que nos une em Cristo e nos envia como testemunhas da unidade divina. Que possamos, como Igreja, ser sinal e instrumento dessa unidade, proclamando com nossa vida e nossas obras que somos todos filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo.
Dada em Roma, no Palácio Apostólico, a 19 de
novembro do Ano Santo Jubilar de 2024.
+ Card. FERRAZ
Pregador Apostólico
——————————
CONCÍLIO VATICANO II. Ad gentes. Documentos do Concílio Vaticano II. Tradução de Maria de Lourdes Murphy. São Paulo: Paulus, 2004.
CONCÍLIO VATICANO II. Lumen Gentium. Documentos do Concílio Vaticano II . Tradução de Maria de Lourdes Murphy. São Paulo: Paulus, 2004.
CONCÍLIO VATICANO II. Nostra Aetate. Documentos do Concílio Vaticano II . Tradução de Maria de Lourdes Murphy. São Paulo: Paulus, 2004.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o Anúncio do Evangelho no Mundo Atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a Fraternidade e a Amizade Social. São Paulo: Paulinas, 2020.
JOÃO PAULO II, Papa. Ut Unum Sint: Carta Encíclica sobre o Compromisso Ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1995.
ESCRITURA SAGRADA. Bíblia de Jerusalém . Tradução da edição francesa. São Paulo: Paulus, 2015.
PONTIFÍCIO CONSELHO DA JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005.